Por Julierme Veras de Moura*
Segurança pública é um tema que não pode ser ideologizado, pois é algo altamente técnico e que envolve diversas áreas de domínio público e privado, as quais devem trabalhar de forma intersetorial e multidisciplinar.
Ao não tratar a segurança pública de forma técnica, lastreada em exemplos exitosos mundo afora, terminamos por condenar toda uma população a mais uma vez permanecer como vítima de escolhas equivocadas e soluções pindoramenses, que podem continuar custando vidas, patrimônios e até a integridade sexual de mulheres, crianças e adolescentes, além do risco de contaminação do próprio Estado democrático de direito.
Dito isso, não podemos deixar de analisar a PEC da segurança pública proposta pelo governo que ora ocupa o poder, ao nos debruçarmos sobre a referida proposta, fica muito evidente que a mesma em nada mudará a realidade da segurança pública no País, no mais será, apenas , mais uma forma de concentrar poder referente a temática, nas mãos da União, assim como foi a concentração da arrecadação após a reforma tributária, essa afirmação não é desprovida de embasamento, pois isso fica evidente nas próprias palavras do atual ministro da justiça “É hora de alterar a Constituição para reforçar competência da União na segurança”.
O que hora é proposto não muda em nada a resolutividade dos problemas relacionados aos nossos altos índices de criminalidade, o tráfico internacional de drogas e armas, a manutenção do domínio armado de determinados territórios, criando um Estado ilegal dentro do próprio Estado Legal, e ainda não trata de ações afetivas para conter o aumento do poder das facções criminosas e a permeabilidade dessas organizações dentro do poder público.
Ela já peca logo na sua essência, pois insiste em tratar a segurança pública como algo isolado do organismo maior que é o sistema de justiça criminal, de nada adianta modificar a Constituição, focando apenas, na reformulação das polícias, se as leis infraconstitucionais, a doutrina e os julgados nas varas de primeira até a última instância adotam posturas explicitamente garantistas, onde as vítimas dos crimes perpetrados por esses, na maioria das vezes não se sentem representadas pelas sentenças aplicadas aos mesmos, ou até atestam a impunidade ao vê-los saindo pela porta de uma delegacia de polícia logo após uma audiência de custódia.
De antemão salta os olhos a intenção de efetivar a criação de mais duas “meias polícias” no País, essas agora em nível federal, algo que historicamente já causa baixa eficiência em nível estadual. Em nenhum momento, os ideólogos da PEC trataram de buscar uma solução para instituir o ciclo completo de polícia nas polícias estaduais, onde cada polícia pode realizar todo o ciclo de persecução criminal (mesmo que na forma mitigada pelo tipo penal), como acontece em todos os países do mundo ocidental desenvolvido.
Outra ação que em nenhum momento foi colocada foi a tipificação do crime de narcotráfico e “novo cangaço” como terrorismo e o enquadramento dos componentes dessas facções e funcionários públicos que facilitem suas ações, como associados ao narcoterroristas, com um aumento significativo de suas penas, sendo essas desprovidas do direito a audiências de custódia, progressão, “saidinhas”, aposentadorias compulsórias e outros benefícios afins.
Uma temeridade exposta na alteração proposta do Art. 21 da CF/88 que trata das competências da União, é a de que ao constitucionalizar o texto que foi apresentado, estará sendo dado poder para que o governo federal acione diretamente o STF para impedir qualquer ação de um governo estadual qualquer, que esteja em dissonância com àquele, mesmo que essas ações do governo local estejam dando resultados positivos, isso não é inédito, mas já foi feito (nesse caso específico não pelo governo federal) em relação às intervenções das Polícias do Rio de Janeiro em comunidades daquele Estado. O que provoca o mesmo sentimento de temeridade, é a proposta na mudança do texto do Art. 22 da CF/88 que trata das competências legislativas privativas da União, dando poderes ao governo federal que estiver no poder a legislar sobre normas gerais de segurança pública, defesa social e sistema penitenciário, o que na prática daria poderes de governar a segurança pública por decreto, inclusive “criando” leis penais, processuais penais e de execuções penais.
Não existe também, a necessidade de constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública, como proposto nessa alteração constitucional, o SUSP já encontra amparo legal na lei infraconstitucional 13.675/18, e a mesma está em plena vigência, e possui julgados que lastreiam seu funcionamento, como é o caso da ADPF 995, da Reclamação 62.455/SP e o Recurso Extraordinário 1.468.558. O que torna assim, um esforço desnecessário, o de incluir o SUSP na já tão extensa Constituição brasileira.
Outro esforço desnecessário é o de mudar a constituição para padronizar boletins de ocorrências, mandados de prisão e certidão de antecedentes criminais (que não são emitidos pelas polícias), pois a padronização de inúmeras ações das polícias já está prevista na própria lei do SUSP, e vão desde a padronização da tecnologia, passando pela padronização da identificação funcional dos agentes de segurança pública, até a formação desses mesmos agentes de segurança.
Para enfrentar a criminalidade violenta, o Brasil não precisa reinventar a roda. Há diversos exemplos bem-sucedidos ao redor do mundo que demonstram ser possível reduzir os índices de violência sem a necessidade de uma mudança constitucional ou a inclusão da Constituição de um Sistema Único de Segurança Pública. Em muitos desses casos, o combate à criminalidade foi impulsionado por ações práticas e eficazes voltadas para o fortalecimento do sistema de justiça e da segurança pública, como o combate rigoroso à impunidade, a prisão de criminosos, a ampliação da inteligência policial e o fortalecimento das ações repressivas contra as organizações criminosas.
Esses países implementaram tanto medidas gerais quanto estratégias específicas de segurança, aproveitando políticas que fortalecem os recursos das forças policiais, investem em tecnologia e inteligência e desenvolvem sistemas eficientes de investigação. Além disso, trabalham com planejamento estratégico e parcerias interinstitucionais para alcançar resultados que mantêm os índices de criminalidade dentro de padrões considerados aceitáveis. Essa abordagem serve como um modelo que pode ser adaptado para a realidade brasileira, mostrando que é possível avançar significativamente sem mudanças estruturais profundas, mas sim com a implementação de ações consistentes e bem fundamentadas.
*Coronel RR PMPE, Bacharel em Direito e Especialista em Gestão de Políticas de Segurança Pública/ RENAESP-SENASP