Artigo: A invisível sobrecarga materna nas ações de alimentos

Por Ana Carolina Santana*

Espera-se que o Direito, na medida do possível, regule as relações sociais mantendo a harmonia em uma sociedade civilizada. Nas ações de alimentos essa harmonia está longe de ser alcançada.

A ação de alimentos é baseada no binômio “necessidade e possibilidade”. A fixação do valor da pensão alimentícia leva em conta tanto as necessidades da pessoa que a recebe (alimentando) quanto as possibilidades financeiras de quem deve pagá-la (alimentante).

É praticamente uma conta matemática.

Mas nessa conta não é levado em consideração o cuidado materno, porque na maioria das vezes é a mulher, mãe, que fica responsável pela criança/adolescente. É a mulher que acorda antes de todos para preparar o café da manhã, separar os uniformes da escola, organizar o lanche. É a mulher que acorda as crianças, dá banho, arruma, alimenta – e essas tarefas não são tão simples quanto parecem – é ela que leva na escola ou na creche, que vai trabalhar, que tem que sair do trabalho quanto ligam da creche porque a criança caiu ou está com febre, é ela que passa noite em claro medindo a temperatura, é a mãe que leva na festinha de aniversário do amigo, que se anula para conseguir dar conta dessa matemática cruel e machista.

Sabemos que não é possível impor dever de afeto, de cuidado. Não é possível obrigar um pai a amar um filho. Mas é possível compensar essa falta. As mulheres devem ser remuneradas por esse trabalho que, em alguma medida, são obrigadas a realizar. Ser mãe exige de nós muitas renúncias, mas nenhuma delas pode ser renunciar à própria dignidade enquanto mulheres que somos.

O peso de carregar uma maternidade solo perpassa por questões extrajurídicas, que impactam diretamente nas futuras gerações. Mulheres sobrecarregadas, exaustas, responsáveis por crianças que crescem demandando ainda mais atenção, crianças que já sentem a carência do “estar presente, mas não ser presença”, porque é humanamente impossível a qualquer ser humano desempenhar todas as funções que a sociedade exige que nós mulheres desempenhemos. 

O Direito precisa rever esse binômio “necessidade – possibilidade”. O dever de cuidado deve ser remunerado através da prestação alimentícia, como já é reconhecido por alguns Tribunais Brasileiros. Isso é o mínimo que pode ser feito para compensar a sobrecarga materna.

Há quase uma década como magistrada, não foram poucas as audiências sobre alimentos que realizei, cada uma com sua peculiaridade, com sua especificidade, mas em todas elas pude ver a crueldade que a sociedade trata as mães, mulheres mães.

Em 2020 me tornei mãe. Reconheço minha posição de privilégio diante da situação da maioria das mulheres mães brasileiras. Mas a minha posição de privilégio ainda não foi suficiente para afastar a mentalidade das escolhas trágicas da mãe. É como se as mães sempre tivessem que escolher entre seguir em frente ou ser uma boa mãe. Seguir profissionalmente ou ser uma boa mãe? Seguir amorosamente, em outro relacionamento, ou ser uma boa mãe? Seguir e batalhar pela realização dos seus sonhos ou ser uma boa mãe?

Infelizmente, estamos longe de viver a harmonia esperada pelo direito quanto à relação materna, no que diz respeito à mãe – mulher.

Mas podemos começar a mudança através da compreensão de que o dever de cuidado materno deve ser remunerado, de que as mulheres devem assim se reconhecer antes mesmo do reconhecimento materno, de que o tempo da mulher é diferente do tempo do homem, de que precisamos de empatia e encorajamento porque as futuras gerações dependem diretamente do nosso trabalho.

A forma como crianças e adolescentes estão sendo amados, educados e orientados é que ditará a saúde mental da próxima geração e isso deveria nos preocupar bastante.

*Ana Carolina Santana – Juíza de Direito.

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