Quando a norma destrói a norma: o risco de retrocesso na política de inclusão feminina
Por Rênio Líbero Leite Lima*
É no paradoxo da aplicação cega da norma que se revela um dos mais inquietantes dilemas do constitucionalismo contemporâneo: quando o instrumento destinado à promoção da inclusão transforma-se, pela rigidez interpretativa, em vetor de exclusão.
Tramita, em São José do Egito, uma ação de investigação judicial eleitoral que visa à cassação da chapa do partido União Brasil, sob a alegação de fraude na cota de gênero. Caso acolhida, a medida ensejará a anulação do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários, com a consequente perda dos mandatos obtidos pela agremiação — dois homens e uma mulher. O efeito prático seria a ascensão de três suplentes homens ao Legislativo municipal. Em outras palavras, uma norma concebida para ampliar a participação política das mulheres acabará, contraditoriamente, por eliminá-las do espaço de poder que já conquistaram pelo voto popular.
A legislação eleitoral brasileira, ao estabelecer a obrigatoriedade de um percentual mínimo de candidaturas femininas, visou a corrigir distorções históricas e garantir condições mínimas de paridade no processo eleitoral. No entanto, sua aplicação sem o necessário filtro hermenêutico, voltado à realização da finalidade inclusiva, tem resultado na punição de mulheres regularmente eleitas, substituídas por homens, em razão de falhas estruturais ou fraudes cometidas por terceiros, muitas vezes sem a sua ciência ou participação.
É preciso distinguir com clareza os planos da sanção e do efeito. A responsabilização daqueles que instrumentalizam candidaturas fictícias para satisfazer formalmente a exigência legal é não apenas legítima, mas imprescindível. Entretanto, punir indistintamente todos os candidatos vinculados ao partido — inclusive os eleitos que efetivamente participaram da disputa, em especial mulheres que lograram êxito — revela-se medida desproporcional e contrária ao espírito da norma protetiva.
Em São José do Egito, se concretizado o cenário de cassação, a Câmara Municipal não apenas perderá uma parlamentar eleita legitimamente, como assistirá à substituição desta por outro homem, em evidente redução da representatividade feminina. A aplicação da norma, nesse caso, não apenas se desvirtua — ela se autofagiza.
Tal interpretação literalista ignora que o Direito não pode ser exercido como instrumento de injustiça. O valor normativo não reside apenas em sua formulação abstrata, mas em sua concretude, em sua realização no mundo dos fatos. A norma eleitoral que pretende fomentar a inclusão feminina precisa ser interpretada a partir do resultado que pretende alcançar, e não apenas conforme os meios que utiliza para tanto.
O Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal terão, inevitavelmente, de revisitar essa temática, sob pena de perpetuarmos um modelo de justiça eleitoral que pune as vítimas no lugar dos responsáveis. Não se pode admitir que o formalismo destrua conquistas democráticas nem que a rigidez dogmática perpetue desigualdades históricas sob o manto de legalidade.
Aplicar a lei com justiça é ir além de seu texto: é compreendê-la à luz de sua razão de ser. E não há razão legítima para que, a pretexto de corrigir uma fraude, se consolide uma injustiça ainda maior — a exclusão da mulher legitimamente eleita.
O desafio que se impõe é o de preservar a integridade do ordenamento jurídico sem sacrificar a sua finalidade. O Direito não pode perder de vista o seu compromisso com a inclusão, a igualdade e a efetividade dos direitos fundamentais.
*Advogado, professor universitário, mestre em Direito, especialista em Processo Civil, autor de livros e um nome respeitado dentro da OAB de Pernambuco. Atualmente, preside a Comissão de Direito Digital da subseção da OAB em São José do Egito e também é vice-presidente da Comissão de Direito Eleitoral da mesma subseção.
Publicar comentário