Artigo: A cansável busca por justiça!
Por Ana Carolina Santana*
Sim, isso mesmo que você leu, a cansável busca por justiça.
Estamos mais familiarizados pela busca incansável por justiça. Mas hoje eu quero mostrar que essa busca pode não somente cansar, mas de fato esgotar as pessoas, sequestrando suas vidas.
Não raras vezes, diante das “tragédias” da vida cotidiana, o acalento que se mostra imediato é a busca por justiça. Quando coloco tragédia entre aspas estou me referindo àqueles acontecimentos criminosos que poderiam ser evitados, mas que, fugindo ao nosso entendimento, eles aconteceram.
É durante o processo de dor que nasce a busca, denominada por muitos de busca por justiça. Essa busca se torna um propósito. No mundo civilizado, a justiça é realizada através do Poder Judiciário, com a aplicação da lei. E, quem produz a legislação que aplicamos ao caso concreto é o Poder Legislativo. De modo que, quando eu, enquanto magistrada tomo uma decisão, ela não reflete o que penso e o que sinto, ela se restringe à aplicação da lei ao caso concreto, após a análise probatória, ou seja, após a averiguação de tudo que foi produzido no processo acerca daquele acontecimento e da pessoa indicada como responsável por ele.
Havendo a demonstração da existência do fato e a comprovação de que a pessoa indicada como autor, de fato foi quem cometeu o fato criminoso, temos a condenação. Uma vez condenado, o juiz/juíza passa à aplicação da pena, verificando as circunstâncias existentes e comprovadas e aplicando o valor que consta na lei para cada uma delas, chegando ao final a uma pena a ser cumprida.
Usei uma linguagem mais simples e acessível para que aqueles leitores que não são da área jurídica compreendam a mensagem.
Retornando. Após a sentença, os recursos são interpostos e após o julgamento de todos, porque um dia eles se encerram, não havendo um prazo determinado, podendo encerrar em um ano ou perdurar por longos anos, temos o que chamamos de trânsito em julgado. É o fim. Quando acaba, quando não há mais possibilidade de recurso. E nesse momento podemos dizer, tecnicamente, que a justiça foi feita!
Apenas tecnicamente.
A justiça, para além da aplicação da lei ao caso concreto, é um sentimento. Sentir justiça não depende do que o Poder Judiciário decida. Depende do caminho que decidimos trilhar após passarmos pelo deserto da dor.
Já ouvi diversas mães de vítimas de homicídio durante minha trajetória na magistratura. Hoje, como mãe, não sou capaz de mensurar a dor de perder um filho. Eu aprendo muito com todas as histórias que ouço e sou muito grata por isso.
Uma delas em particular me tocou. Eu era juíza substituta em outra comarca que estava sem juiz titular e, uma vez por semana, quando eu ia àquela comarca, uma senhora me procurava com um único pedido “agende o júri do assassino do meu filho”. E assim foi feito, não uma ou duas vezes, mas três vezes, no mesmo ano. Nas duas primeiras remarcações, que foram de forma justificada dentro do previsto na lei, eu fiquei preocupada, porque eu havia prometido àquela mulher, que buscava a justiça pelo filho assassinado, que ela iria passar o Natal daquele ano com a resposta que buscava, e de algum modo, em nossas conversas eu já a preparava para o fato de que poderia haver a condenação, como também poderia haver a absolvição, isso seria decidido pelo Conselho de Sentença.
Não havendo mais data em uma pauta bem extensa, agendei o júri para um dia após meu casamento. E aqui eu reitero a importância de reconhecer o sacerdócio da magistratura e de ter ao lado pessoas que compreendam que ser juíza não tem dia nem hora.
Realizamos o júri. Réu condenado.
Naquele momento eu fui curtir a lua de mel com a sensação de que estava tudo bem. Tudo ocorreu conforme esperado por aquela mãe. O júri foi realizado antes do Natal. O acusado foi condenado e continuou preso cautelarmente.
No ano seguinte, a reencontrei e conversamos. Ela estava bem insatisfeita, revoltada com a pena aplicada, achou muito pouco. E eu também. Expliquei a ela como funcionava a aplicação da pena e fui conversando sobre aquele sentimento de revolta mesmo após o reconhecimento da culpa pelo Sistema de Justiça.
Esse sentimento é mais comum do que imaginamos.
Percebo que muitas pessoas ao se depararem com essas “tragédias” iniciam uma verdadeira cruzada por retribuição. Retribuição na medida da sua revolta, da sua indignação. Retribuição na medida da sua dor. E é uma grande retribuição. Impingir dor a qualquer custo. “Se está doendo em mim, quero que em você vá muito além”. Fiscalização também. Porque não existe prisão perpétua no Brasil. Fiscalização da vida de quem já cumpriu a pena imposta, para mostrar a todos que ainda não foi feita a justiça buscada e esperada. Porque aquilo que se vê não pode ser justiça.
Eu não consigo imaginar o quanto deve ser doloroso esse sentimento.
Talvez eu esteja sendo julgada, nesse exato momento, por você que lê esse artigo, da seguinte forma “ela fala isso porque não é com ela” “é fácil falar pra quem nunca passou”. Não se engane. Não busque mais uma desculpa para alimentar o que tem consumido sua vida e, principalmente, sua paz.
Não só posso falar, como posso também aconselhar. Siga em paz!
Ficar presa a esse sentimento não modificará o que já aconteceu e não ajudará em absolutamente nada! A vida segue e nós devemos seguir também. Honrando a memória dos nossos, aceitando os trânsitos em julgado como a resposta formal para aquela situação. Porque a verdadeira resposta está dentro de nós.
O que faremos com essa dor?
Dizem que a dor não diminui, nunca! Mas o tempo faz com que outras coisas cresçam ao redor dela e ela fica ali, no lugar dela, no centro de memórias lindas e na certeza de que estamos de fato de passagem, uns se vão antes do tempo que julgamos ser o certo para ir. A dor permanece, mas a vida continua.
Alimentar retribuição. Desejar vingança. Viver para que o mal seja pago com outro mal ainda maior, não nos engrandece. Apenas nos diminui. Talvez ainda mais abaixo do causador da nossa dor.
Alimentar as boas memórias. Desejar paz. Viver para ressignificar o que aconteceu, encontrando inclusive um novo propósito de vida, nos engrandece. Nos aproxima de Deus. Talvez esse seja o grande objetivo da nossa dor.
*Ana Carolina Santana – Juíza de Direito.
Publicar comentário